
Nos últimos vinte anos o bem-estar para animais de produção se tornou um dos temas mais discutidos pela indústria mundial da proteína animal, com grande impacto em sistemas altamente confinados como aves de postura, suínos e gado de leite. Na suinocultura o ponto fundamental é a supressão das gaiolas para fêmeas gestantes e, apesar de todo avanço da produção brasileira de carne suína, ainda não temos uma posição clara a respeito do assunto. Os países da Europa foram os primeiros a definir regras claras de bem-estar animal e várias indústrias de alimentos ao redor do mundo já se posicionaram sobre o tema. Varejistas e redes de fast food estão fazendo exigências para seus fornecedores, e os consumidores cada vez mais querem saber como são criados os animais que lhes fornecem alimentos.
A melhor estratégia é a definição clara da posição do Brasil em relação ao tema, e a maneira mais eficiente de se fazer isso é trazer o assunto para o debate setorial, e debater bem-estar para suínos inevitavelmente requer uma definição sobre o uso das gaiolas de gestação. Não há como tergiversar sobre o assunto, temos que encará-lo de frente. Muito se tem falado em bem-estar no Brasil, mas o tema das gaiolas de gestação ainda é um tabu nesta discussão. Quem mais entende de produção são os produtores, e é a própria cadeia produtiva de suínos quem deve liderar esta discussão. Na semana passada tivemos mais uma oportunidade para tratar do assunto durante o III Congresso Brasileiro de Bioética e Bem-Estar Animal, realizado em Curitiba, mas infelizmente a participação das cadeias de produção animal foi baixa.
O congresso terminou com a declaração de Curitiba afirmando: “nós concluímos que os animais não humanos não são objetos. Eles são seres sencientes. Consequentemente, não devem ser tratados como coisas.” A senciência é a capacidade que um ser tem de sentir conscientemente algo, ou seja, de ter percepções conscientes do que lhe acontece e do que o rodeia. Em resumo, é apenas uma reafirmação de conceitos já há muito propagados por filósofos e cientistas. Jeremy Bentham (1748-1832) já dizia que o que deveria ser considerado no debate sobre o dever de compaixão dos seres humanos perante animais não-humanos não era se estes eram dotados de razão ou linguagem, mas se eram capazes de sofrer. Charles Darwin (1809-1882) acreditava que a “atividade mental” dos animais era semelhante à dos humanos. No entanto o filósofo francês René Descartes (1596-1650) nos deixou uma duradoura influência com a sua opinião de que os animais eram “máquinas” sem alma.
O debate atual sobre as questões do bem-estar para animais de produção tem como marco o livro “Máquinas Animais”, da ativista britânica Ruth Harrison, que em 1964 denunciava os métodos de produção no Reino Unido, e que resultou na indicação do Médico Veterinário Rogers Brambell para investigar a veracidade dos maus-tratos nos sistemas produtivos. O Relatório Brambell, de 1965, tornou-se uma referência no assunto ao estabelecer as bases para as “cinco liberdades”. O pesquisador John Webster, da Universidade de Bristol, Inglaterra, membro-fundador do Conselho de Bem-estar de Animais de Produção do governo britânico, considerado um dos pais da ciência do bem-estar animal, foi o proponente do modelo das “cinco liberdades” como padrão para se definir os elementos de alto grau de bem-estar em animais domésticos. De acordo com o modelo, todos os animais devem ser livres do medo, do estresse, da fome e da sede. Além disso, também devem estar longe do desconforto, da dor e de doenças, e ter liberdade para expressar seu comportamento ambiental.
Na conferência de abertura em Curitiba, John Webster ressaltou que “o conceito de bem-estar animal está incorporado à questão de respeito a todas as vidas: dos humanos, dos animais e, acima de tudo, a sustentabilidade da vida do planeta”. De acordo com Webster, na Europa já é consenso que “animais não são commodities” e que os consumidores devem estar preparados para “pagar” pelo trabalho realizado pelos animais, exemplificando que uma vaca que produz 50 litros de leite por dia ou uma porca que amamenta 13 leitões, têm um estresse, um esforço físico, comparável a um triatleta.
A ideia é capaz de causar arrepios em certas rodas de debate sobre produção de proteína animal em qualquer lugar do mundo, mas isso não tira o mérito da questão e impõe um grande desafio às cadeias produtivas. O debate muitas vezes é impedido de avançar por ser tomado de emoções e extremismos, tanto para um lado quanto para o outro. Se ativistas dos direitos animais e vegetarianos de todas as correntes apelam para uma antropomorfização exacerbada dos animais de produção, do lado contrário, supostos defensores da proteína animal apelam para discursos catastrofistas, muitas vezes utilizando imagens de pessoas passando fome, para estabelecerem uma sofrível conexão entre bem-estar animal e aquisição de alimentos mais baratos. Alimentar-se atualmente é uma questão econômica, de renda, em qualquer país do mundo. Retirando-se estes extremos há espaço para o debate profissional e científico sobre o assunto.
Todos os países que estabeleceram normas de bem-estar para produção de suínos e mesmo indústrias de alimentos que estabeleceram padrões para seus fornecedores, o fizeram através de regras claras, bem definidas e cronologicamente estabelecidas. Ninguém em sã consciência vai propor uma drástica mudança nos sistemas de produção sem levar em conta as questões econômicas, de produtividade e de tecnologia, no entanto, também não é solução ir deixando o assunto das gaiolas de gestação à margem da discussão. No estabelecimento de padrões para o bem-estar animal, é fundamental uma ampla discussão com a cadeia produtiva, com tempo suficiente para adequações dos sistemas e educação dos agentes e dos consumidores. De outra forma, em dado momento as regras serão criadas por terceiros e impostas aos sistemas de produção. Temos assistido a atuação de grupos ativistas contrários à proteína animal em vários países, no mais recente deles, na Nova Zelândia, indivíduos se empregaram em granjas e levaram ao público imagens que evocavam maus tratos aos suínos, o que imediatamente levou o governo neozelandês a endurecer as regras de produção.
Outra situação bastante comum é a solução dada pela pressão econômica, e neste caso para atender exigências de países importadores ou mesmo dos consumidores locais, determinadas indústrias estabelecem suas próprias regras, e tentam vender esta solução como um diferencial de mercado, muitas vezes reforçando o estigma sobre o problema a ser atacado. Em um caso bastante recente, a propaganda de uma marca de frango exaltava que sua produção era livre de hormônios. Hora essa, toda produção brasileira de frangos é livre de hormônios. E neste caso a marca comercial ao invés de educar os consumidores gerou mais dúvida, pois se é necessário dizer que o seu produto é livre de hormônios deve ser porque os outros podem ter hormônios! No congresso de Curitiba o professor John Webster sintetizou isto muito bem ao dizer que “propaganda não é educação”.
O Brasil, como um dos maiores players globais de produção e exportação de carnes, vai ter que deixar claro sua posição, seja por pressão de terceiros países, dos próprios consumidores, da mídia ou de ativistas dos direitos animais. Até outro dia a sociedade em geral nem mesmo tinha conhecimento dos animais de laboratório, até a questão vir à tona através do caso do beagles do Instituto Royal, e o assunto foi parar nos principais veículos de comunicação do país. Para o nosso caso não temos sequer uma resposta consensual sobre o tema. Se alguém amanhã perguntar ao Ministro da Agricultura, ao presidente de alguma entidade de classe, ao diretor de produção de uma agroindústria ou para algum produtor de suínos, sobre a posição do país ou da cadeia produtiva a respeito das gaiolas de gestação, corremos o risco de quatro respostas diferentes. A que me causa mais temor é a de Brasília, porque em política tudo muda de acordo com o mais recente interesse, e da noite para o dia nasce uma nova legislação.
O tempo da discussão do “se” já passou, agora é “quando” vamos abolir as gaiolas de gestação. Alguém interessado na construção de uma nova granja ou na definição do sistema de produção de um grande complexo agroindustrial de suínos tem se baseado em quais definições de bem-estar animal? Qual a proposta da indústria para o tema? Qual é o plano de contingência para tratar do assunto caso haja algum escândalo envolvendo o sistema produtivo? Essas são apenas algumas perguntas que precisam de respostas claras, sobretudo para um país que quer liderar a produção mundial de proteína animal. E qualquer proposição que não saia do debate com toda a cadeia produtiva vai ser excludente. Bem-estar animal é ciência, e assim deve ser discutido.












