A produção de alimentos seguros demanda um arcabouço regulatório moderno, tecnicamente embasado e que promova a corresponsabilidade entre o poder público e o setor privado. Essa corresponsabilidade é um dos pilares da modernização dos sistemas de inspeção de carnes em diversos países, incluindo membros da União Europeia, que estão adotando abordagens baseadas em risco, com flexibilidade para incorporar avanços científicos e tecnológicos.
Nesse contexto, a Lei nº 14.515, de 29 de dezembro de 2022, amplamente conhecida como “Lei do Autocontrole”, introduz uma modernização do sistema de inspeção pautada em dois pilares, ao prever em seu Art. 6º a análise de risco como abordagem estratégica, o que fortalece a eficiência e otimização das ações públicas na segurança de alimentos de origem animal, e o Art. 5º da mesma lei, que consagra o credenciamento de pessoas jurídicas e a habilitação de pessoas físicas para a prestação de serviços técnicos ou operacionais relacionados à defesa agropecuária, alinha-se às melhores práticas internacionais. Importante destacar que a norma veda o exercício de atividades típicas de poder de polícia, mantendo sob responsabilidade exclusiva do Estado as funções indelegáveis de fiscalização.
O Regulamento (UE) nº 2017/625 do Parlamento Europeu, por exemplo, define claramente os conceitos de “sob responsabilidade do veterinário oficial” e “sob supervisão do veterinário oficial”, prevendo que ações operacionais — como inspeções ante e post mortem — podem ser realizadas por auxiliares oficiais, desde que supervisionados ou sob responsabilidade do veterinário oficial. Essa lógica, que também aparece em outros países, como Reino Unido, visa garantir eficiência sem comprometer o controle sanitário.
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Na Dinamarca, outro mercado de referência, a inspeção post mortem é realizada, em parte, por auxiliares oficiais e por funcionários das plantas, sob supervisão e responsabilidade do veterinário oficial. Já na Bélgica, os profissionais (veterinários) contratados pelas plantas realizam a inspeção ante mortem, enquanto o staff do próprio frigorífico, sob supervisão do veterinário contratado pode executar a inspeção post mortem, desde que a planta tenha histórico comprovado de boas práticas higiênicas e sistema HACCP implementado (Alban et al, 2011). No Reino Unido, há um sistema de frequência flexível do veterinário oficial, com menor exigência de presença contínua nas linhas de inspeção quando os critérios de risco e histórico sanitário são atendidos (FSA, 2023).
Esses modelos não representam um enfraquecimento da vigilância sanitária, mas sim um aprimoramento técnico-administrativo. A função do Estado permanece estratégica e soberana, centrada na validação, auditoria e decisão sobre os casos sanitários críticos,
enquanto se delegam , de forma regulada, tarefas executivas e operacionais. Trata-se de uma distribuição funcional de responsabilidades, voltada à racionalização dos recursos públicos, à elevação da eficiência dos controles e à promoção da inovação.
Dessa forma, a contratação de terceiros para a execução de atividades técnicas e operacionais, conforme prevista na Lei nº 14.515/2022, não apenas é legítima, mas necessária para o fortalecimento do Sistema de Inspeção. É também condizente com práticas internacionais consolidadas, desde que acompanhada de um robusto sistema de supervisão oficial, critérios técnicos claros e responsabilidade compartilhada.
Diante desse cenário, a construção de sistemas de inspeção modernos, centrados na avaliação de risco e sustentados por uma articulação eficaz entre o setor público e privado, não é apenas uma resposta mais técnica às demandas sanitárias atuais — é também uma estratégia de sustentabilidade institucional e econômica. Esses sistemas reforçam a confiança do consumidor, ampliam o espaço para a inovação industrial e fortalecem o papel do Estado como garantidor da integridade do alimento. Em um setor globalizado e altamente dinâmico, alinhar a inspeção à ciência, à gestão de riscos e à co-responsabilidade institucional é não apenas necessário, mas inevitável.
